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Jogador de futebol é CLT ou PJ? Como funciona o direito trabalhista para atletas no Brasil

“O cara ganha milhões e ainda reclama”. Esse tipo de frase é comum nas discussões mais rasas do futebol brasileiro envolvendo calendário, exaustão dos atletas e ações trabalhistas de jogadores profissionais.

Mas o que pode passar despercebido nesses debates é que o jogador profissional no Brasil é, assim como milhões de outras pessoas, um trabalhador normal sob o regime da Consolidação das Leis do Trabalho (CLT).

— No futebol masculino, porque a CBF assim exige, todo mundo é contratado como CLT, com carteira assinada. Quem não é, é porque está com contrato de formação — explica Higor Maffei Bellini, advogado mestre em direito desportivo, em contato com a Trivela.

Dorival Júnior, ao deixar a Seleção Brasileira, teve direito a multas por rescisão de contrato (Foto: Imago)

O atleta, que ganha milhões de reais por mês, tem basicamente os mesmos direitos do que os demais trabalhadores no país:

  • Férias proporcionais ao tempo trabalhado;
  • 13º salário proporcional ao tempo trabalhado;
  • Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS) depositado em conta;
  • Jornadas de trabalho;
  • Pagamento adicional noturno;
  • Descanso semanal remunerado (DSR).

O que existem são mudanças especiais para essa classe em específico.

— A carga horária do jogador é de oito horas (diárias), como todo trabalhador, mas tem algumas diferenças. Ele dificilmente vai fazer oito horas em um dia de trabalho, com exceção de quando vai viajar, e aí também tem adicional noturno. Atleta quando está voando ou andando de ônibus está trabalhando — explica o especialista.

Adaptação da CLT para o jogador de futebol

Os clubes da elite nacional, mais organizados, fazem banco de horas, assim como em empresas “normais”. Então, por exemplo, se um jogador treina duas horas pela manhã e duas horas à tarde, somaram-se quatro horas de trabalho — logo, existem quatro horas “disponíveis” no banco de horas.

Maffei ainda explica que o sistema de folgas também segue o padrão da lei trabalhista: dos sete dias da semana, o atleta tem direito de ficar um dia em casa como descanso semanal remunerado. Mas, segundo ele, poucos clubes cumprem isso em sua programação.

— (O clube pode não cumprir) por conta da rotina de treino e viagens. Quando não cumpre, tem que pagar o DSR em dobro. E se, por acaso, em uma semana em que as viagens extrapolarem as 44 horas semanais de trabalho, o atleta tem que receber hora extra. Nesse ponto, a CLT vale igual para todo mundo.

Treinar no sábado e jogar no domingo é um problema trabalhista?

Os finais de semana, dias mais comuns de folga da população, são justamente os mais importantes na semana dos jogadores. Mas, ainda assim, o clube é obrigado por lei a dar uma folga na semana, sem dia específico.

O que atrapalha a logística é o calendário do futebol nacional.

— O atleta jogou no domingo. Na segunda-feira, ele vai fazer o treino regenerativo ou vai viajar de volta. Na terça-feira, treina normal. Na quarta, ou ele joga, ou ele treina. Na quinta, ou está no regenerativo, ou viajando de volta. E na sexta ele está lá treinando de novo. E no sábado ele pode acabar viajando para jogar no domingo. Ou seja, todos os dias foram trabalhados — ilustra o advogado.

E, nesse domingo, o atleta deve receber em dobro as horas trabalhadas, porque o clube acaba “tirando” dele o direito à folga. Para os jogos à noite, também conta-se o adicional noturno — que, pela Lei Geral do Esporte, é diferente: a partir das 23h.

Como funciona o direito a férias?

Outra especificidade que diferencia o trabalhador do futebol é a questão das férias. O recesso da categoria é sempre em dezembro — independente de quantos meses o atleta trabalhou no ano, ele deve tirar férias em dezembro.

Existem cenários em que os jogadores podem não ter férias mesmo no período de recesso de dezembro. Isso aconteceu, por exemplo, com o Fluminense, durante a disputa do Mundial de Clubes de 2023, entre os dias 12 e 22 daquele mês.

Marcelo e companheiros de Fluminense não tiveram as férias de dezembro por conta do Mundial em 2023 (Foto: Imago)
Marcelo e companheiros de Fluminense não tiveram as férias de dezembro por conta do Mundial em 2023 (Foto: Imago)

O advogado explicou à reportagem que, nesse caso, essas férias deveriam ser gozadas em outro momento. “Férias é a critério do empregador, não do empregado”, reforça.

— O clube pode optar por não sair de férias em dezembro, mas tirá-las em janeiro, fazer pré-temporada em fevereiro para voltar aos campeonatos em março. Mas isso não acontece porque os clubes são obrigados por contrato de televisão a colocar os times titulares.

Há formas de driblar essa situação, como o que fez o Athletico Paranaense em diferentes ocasiões na última década: colocou o time sub-23 para jogar o campeonato estadual.

Por outro lado, também existe a possibilidade do atleta “vender” as férias, como qualquer outro trabalhador — e Maffei reforça que o jogador deve ser tratado como um empregado “normal”.

— Os clubes alegam que os atletas não têm tais direitos porque a Lei Pelé não fala. Mas a Lei Pelé remete à CLT e às leis previdenciárias para complementação e garantia aos direitos dos atletas.

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O que gera mais problemas na Justiça

Existe um padrão na divisão dos valores a serem recebidos pelos atletas no que diz respeito a salários e direitos de imagem: idealmente, o total do valor mensal embolsado pelo atleta é fruto de 50% de direitos de imagem e 50% de salário previsto na carteira de trabalho.

“O direito de imagem é um contrato de natureza civil, pelo qual o clube paga o atleta para utilizar a imagem dele. O problema é que os clubes, via de regra, acabam não usando a imagem do atleta”, explica Higor Maffei.

As imagens usadas para entrevistas não contam nesse direito, pois já são obrigações contratuais. E, segundo o advogado, essa não utilização da imagem do atleta permite que ele alegue fraude na contratação — o que, então, gera a maioria dos processos contra clubes.

— Nessa fraude, alega-se que todo o valor era referente ao salário e nunca houve a contratação efetiva da imagem. Apenas foi pago como direito de imagem para não gerar encargos trabalhistas, previdenciários e fiscais — afirma o advogado.

Por exemplo: se o total recebido por um atleta é R$ 1 milhão mensal, por lei, metade disso é referente aos direitos de imagem. Isso significa que o clube tem que pagar os encargos trabalhistas (férias remuneradas, FGTS e aposentadoria, por exemplo) de apenas metade deste valor; ou seja, R$ 500 mil.

Segundo o especialista, grande parte dos clubes brasileiros obrigam os jogadores a terem uma empresa em seu nome, com CNPJ, para receber por lá o seu direito de imagem. Isso ajuda a diferenciar o que é valor de imagem e o que é salário — este, pago na conta do jogador como pessoa física.

Lesões e processos por acidente de trabalho

A CLT estabelece que as responsabilidades em relação à segurança e saúde do trabalhador são da empresa e isso também se aplica aos atletas. O acidente de trabalho é definido como “o evento que ocorre durante a prestação de serviço, provocando lesão ou perturbação funcional que afeta a capacidade de trabalho”.

Lesionar-se treinando ou jogando, no caso do jogador de futebol, se enquadra nessa definição. E o trabalhador acidentado também tem direito a auxílios.

SANTOS vs ATLÉTICO-MG – BRASILEIRO 2025
Neymar sai de campo após um acidente de trabalho (Foto: Imago)

Grande parte dos processos no futebol, surpreende Maffei, têm origem em lesões. Por lei, até uma distensão muscular é um acidente de trabalho que o clube é obrigado a tratar.

— Os clubes não emitem o Comunicado de Acidente de Trabalho (CAT), não afastam o atleta e depois dispensam. Ou então mandam o atleta para casa para não custear alojamento e alimentação. Ou custeia o tratamento e não paga o salário — explica.

Futebol profissional feminino tem uma diferença importante

Apesar de todos os atletas do masculino terem carteira de trabalho assinada, a grande maioria das jogadoras profissionais não estão enquadradas na CLT — mesmo nos grandes clubes da modalidade, como o Corinthians.

— No feminino, você tem jogadoras como prestadoras de serviço. Não é um PJ no sentido comum da expressão — pontua Maffei.

A principal diferença do prestador de serviço para a pessoa jurídica (PJ) é que o primeiro presta seu serviço como pessoa física, enquanto o segundo presta esse serviço como uma empresa. Teria, portanto, que abrir um CNPJ e se enquadrar em modalidades como Microempreendedor Individual (MEI) e Microempresa (ME), por exemplo, a depender do faturamento.

(240810) — PARIS, Aug. 10, 2024 — Marta of team Brazil reacts before the women s gold medal match of football between
Principal jogadora da história, Marta atuou poucos anos no Brasil (Foto: Imago)

Por conta disso, as jogadores que não têm carteira assinada não têm direitos previstos na CLT, como férias, 13º salário e licença maternidade. “Elas são contratadas dessa forma justamente para o clube não ter essa despesa, o que é errado”, indica.

— Infelizmente, ainda tem jogadoras com medo de processar os clubes pelo que é direito delas. Isso porque no feminino e em divisões menores no masculino, os clubes se falam, e acabam fechando portas — revela o especialista.

Maffei espera, no entanto, que a realidade do feminino possa mudar. Muitos clubes burlam as leis da CLT por se colocaram como amadores, mesmo sendo até campeões internacionais — e uma Copa do Mundo da modalidade no Brasil pode ser o passo que faltava.



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