Notícias do Esporte

Especialistas apontam erro do São Paulo em novo protocolo na área de psicologia

O São Paulo não tem um psicólogo trabalhando junto à comissão técnica desde o fim do ano passado, quando a profissional Anahy Couto deixou o Tricolor. Segundo o UOL, a direção do clube mudou os rumos e adotou um novo protocolo, agora direcionando as demandas individuais dos jogadores a um consultório externo.

A medida, no entanto, não é a ideal.

A Trivela consultou três psicólogos do esporte que afirmaram: a decisão do São Paulo é um erro de entendimento de como funciona a psicologia dentro do futebol e as diferenças entre cada uma das suas áreas de atuação.

Por que o novo protocolo do São Paulo para psicologia é um erro?

O primeiro ponto é entender as diferenças entre a psicologia clínica, em consultório, como o São Paulo oferece ao elenco, e a esportiva, voltada para atuação no dia a dia do clube.

O atendimento para saúde mental individualizado é aquele onde qualquer pessoa pode marcar uma consulta para falar com um psicólogo em um consultório, geralmente voltado para questões pessoais ou profissionais do indivíduo.

A psicologia no futebol, com um psicólogo do esporte trabalhando dentro do clube, é direcionada para questões completamente diferentes, como fortalecer vínculos em grupo, trabalhar a ansiedade para alguma partida e mais pontos individuais e coletivos voltados para prática do esporte.

Além do trabalho com o grupo de jogadores, o profissional também atua em conjunto com os profissionais da saúde de outras áreas da respectiva equipe, como explicou João Ricardo Cozac, doutor em psicologia do esporte pela USP e presidente da Associação Paulista da Psicologia do Esporte e do Exercício, à Trivela.

— Ao rejeitar um trabalho de psicologia do esporte no clube, o São Paulo demonstra não conhecer a importância das variáveis psicológicas em um atleta de futebol. — inicia o especialista.

— São aspectos individuais como a concentração, o controle da ansiedade, a tomada de decisão, entre outros. Em questões coletivas, seria o desenvolvimento de lideranças, união do grupo, coesão de equipe, integração, representação dentro e fora de campo, além de que o profissional atua de forma interdisciplinar com os demais membros da comissão técnica e de saúde. Todos os pontos cognitivos que são trabalhados pela psicologia do esporte e foram ignorados pela gestão do time. — completou.

A psicóloga do esporte Yolanda Alencar, que atua em equipes de esports e no Inter de Limeira, reforça a importância do acompanhamento do profissional na rotina diária, essencial para entender e conseguir perceber comportamento dos jogadores durante treinamentos e jogos. Isso poderia evitar problemas psicológicos mais graves.

— Se um clube tem um profissional da psicologia, que acompanha os treinos, enxerga o comportamento dos atletas dentro e fora de campo, as relações, e ouve a comissão técnica, é melhor ainda porque tem a completude do trabalho, consegue trabalhar com muitos dados de diferentes fontes. Isso evitaria que muitos atletas cheguem ao nível extremo de adoecer psiquicamente, a uma depressão ou crises de ansiedade e pânico, como temos visto em entrevistas recentes de jogadores — detalha Alencar.

Em 2015, um estudo da Fifpro, a associação internacional de jogadores, apontou que 38% dos jogadores ativos já tinham apresentado sintomas de depressão. Esses atletas sentiram uma falta de apoio no meio do esporte para falar sobre a saúde mental.

O acompanhamento diário também é peça central no combate à lesões em casos de um atleta que está com sono ruim ou muito estressado, que fica propenso aos problemas físicos.

As diferenças entre as psicologias

  • Psicologia clínica: atendimento geral e individualizado a uma criança, adolescente, adulto ou idoso sobre questões psicológicas do individuo em um ambiente clínico.
  • Psicologia do esporte dentro de um clube de futebol: trabalha aspectos individuais e coletivos relacionados à performance esportiva dentro do respectivo clube. Ao enxergar se um atleta está com alguma questão psicológica a ser resolvida, o encaminha para um psicólogo clínico ou psiquiatra de fora do clube.
  • Psicologia do esporte clínica: atendimento individualizado a um atleta voltado à performance esportiva em um consultório. Não pode trabalhar no mesmo clube dos atletas que atende individualmente.

A posição do São Paulo também é contrária ao que recomenda a FifPro, segundo o psicológo do esporte Matheus Vasconcelos, diretor da Rede Naurú de Saúde Mental no Esporte.

— Há mais de uma década a FifPro recomenda que os clubes tenham esse cuidado em saúde mental sendo ofertado de maneira interna dentro da instituição. [Esse protocolo] é uma coisa que não faz tanto sentido para a dimensão de um clube como o São Paulo — disse.

No Brasil, a Lei Geral do Esporte (antiga Rei Pelé) obriga a presença de um funcionário voltado à saúde mental em categorias de base, mas para o profissional não existe nenhuma imposição. Vasconcelos disse que essa quebra no processo atrapalha com tudo que foi construído na base.

— Se existe a obrigatoriedade na base e todo clube visa subir seus atletas de base para o profissional, é importante que dentro do ambiente profissional também tenha um profissional de psicologia do esporte que dê assistência nessa transição da base para o profissional, porque tem todo cuidado durante a formação na base e, de repente, tem um rompimento de toda assistência, aprendizado e suporte. É uma desconexão de todo o projeto de uma formação de atletas dentro de uma instituição — explica o psicólogo.

Elenco do São Paulo lamenta eliminação na Libertadores (Foto: IMAGO)

Tanto Alencar quanto Vasconcelos, no entanto, apontam que a escolha do Tricolor ainda é positiva porque, ao menos, ofereceu um consultório externo, mesmo que não seja a ideal.

Os especialistas ouvidos pela Trivela também apontam que a presença de um psicólogo no São Paulo poderia ter ajudado o elenco tricolor a lidar melhor com um episódio sofrido nesta temporada.

Morte de Izquierdo abalou elenco são-paulino

Em 22 de agosto, o elenco do São Paulo passou por um trauma que marcou a vida de todos que estavam em campo: o zagueiro uruguaio Juan Izquierdo, do Nacional, caiu desmaiado no gramado. Ele sofreu uma arritmia cardíaca e foi encaminhado ao hospital, mas morreu cinco dias depois.

Um dia depois de verem um colega de trabalho morrer no exercício da função, o Tricolor entrou em campo pela ida das quartas de final da Copa do Brasil e perdeu para o Atlético-MG por 1 a 0, no Morumbi. Após a partida, o lateral-direito Rafinha assumiu que os jogadores são-paulinos estavam abalados.

— Claro que atrapalha [o lado psicológico]. Não é desculpa porque perdemos, mas atrapalha. Disputamos um jogo há seis dias em que um companheiro de profissão perdeu a vida. É complicado, o clima fica pesado, todo mundo pensa, não tem como tirar da cabeça. — disse o capitão da equipe paulista.

No mesmo esquema atual, o São Paulo disponibilizou aos jogadores um psicólogo de um consultório externo.

Yolanda Alencar aponta que a presença de uma profissional de psicologia dentro do clube naquele momento poderia ajudar os atletas a lidarem melhor com o luto e se abrirem sobre os sentimentos após o trauma.

— Seria muito importante ter tido esse espaço para os jogadores falarem sobre isso, uma intervenção em grupo logo após o ocorrido para que todos pudessem refletir e de alguma maneira verbalizar o que sentiram. Não é comum vermos uma pessoa morrer na nossa frente fazendo o que ama. Isso é um choque para muitos atletas. Era o momento de colocar aqueles sentimentos que ficaram engasgados para fora da melhor maneira possível. — disse a psicóloga.

— Se houvesse um trabalho de psicologia contínuo no clube, era o momento que o psicólogo poderia orientar os atletas, fazer um trabalho de equipe no plano do equilíbrio emocional, no fortalecimento daquele momento, e, se preciso fosse, encaminhar esses atletas para algum trabalho clínico de acompanhamento fora do clube. — reforçou o doutor João Ricardo Cozac.

E o São Paulo, talvez mais do que qualquer outro clube no Brasil recentemente, viu como ter ali uma psicóloga fez a diferença para recuperação mental de um jogador que se tornou um símbolo no clube.

Recuperação de Alisson foi exemplo da atuação de um psicólogo do esporte

Alisson comemora gol pelo São Paulo
Alisson comemora gol pelo São Paulo (Foto: IMAGO)

Má fase esportiva e lesões levaram o então atacante Alisson a enfrentar uma severa depressão entre o fim de 2022 e o início do ano passado, momento que ficou afastado para cuidar da saúde mental. O jogador pensou em cometer suicídio e sofreu com crises de ansiedade.

O apoio da família e especialmente da então psicóloga do São Paulo ajudaram Alisson a procurar ajuda, como contou ao programa Bola da Vez.

— [Em uma crise] a Dra. Anahy me liga, psicóloga do clube, e falou ‘Alisson, se afasta e não vê nada [sobre futebol] que você vai se acalmar’. […] A Dra. Anahy me passou pra psiquiatra, eu não passava pra ela o que eu sentia, só falava que queria parar, que não aguentava mais ver futebol. Eu guardava muito assim. Não me sentia confortável. Eles me falaram que eu estava no início de uma depressão, numa crise de ansiedade — afirmou.

O hoje volante deu a volta por cima e foi uma das principais peças no título da Copa do Brasil em 2023. Neste momento, se recupera de uma lesão e é um xodó da torcida são-paulina.

A atuação de Anahy com Alisson é um case de suceso na atuação da psicologia do esporte, explica Matheus Vasconcelos.

— O caso do Alisson, sem dúvidas, é um exemplo de como a presença do psicólogo do esporte dentro da instituição acaba sendo muito importante, porque teve alguém capaz de agir e identificar a necessidade de suporte imediatamente. Com profissionais de fora, pode demorar, pois tem todo o processo de encaminhamento e agendamento. Até que isso ocorra, o profissional do clube já poderia ter tido uma primeira assistência, um primeiro cuidado. — analisou.

Poderia ser um exemplo para o clube olhar de forma diferente ao campo psicológico e emocional, só que a gestão entendeu de outra forma.

Em entrevista ao podcast Arquibancada Tricolor, em junho, o diretor de futebol do Tricolor, Carlos Belmonte, detalhou que a gestão entendeu o dia a dia da psicóloga não estava “dando os resultados” que esperavam.

— A gente achou que, em alguns momentos, a presença da psicóloga no dia a dia não estava dando os resultados que a gente esperava. Não que a gente não acredite que necessite do psicólogo, isso é inquestionável. Mas nós estamos procurando um profissional que não seja integrado à comissão técnica. Nós não queremos alguém que fique lá o dia inteiro — disse o dirigente.

Ainda há uma resistência na comissão técnica de hoje, no cargo desde abril, comandada por Luis Zubeldía, como o próprio disse em uma entrevista coletiva em 14 de maio, reforçando que seus auxiliares podem “substituir” um profissional de psicologia pela capacidade de se comunicar com o elenco.

— É muito importante estar perto do jogador, que ele se sinta o melhor atendido possível em todos os aspectos. De repente, não precisa ser um profissional de psicologia, mas o meu grupo técnico tem comunicação com os jogadores, o estafe do São Paulo também, e isso é muito importante. — disse Zubeldía.

João Ricardo Cozac aponta um erro clássico nessa abordagem: o senso comum de pensar que a psicologia seria apenas um bate-papo que qualquer um pode executar.

— A fala de Zubeldía reforça muito o senso comum e a falta de conhecimento técnico, científico, específico sobre a psicologia do esporte no futebol. Muitos técnicos entendem que um bate-papo é suficiente e isso é algo que qualquer um poderia estar apto. Não entendem, entretanto, que existem técnicas psicológicas, o papel e o lugar do psicólogo que nenhum outro profissional de nenhuma outra área deve ou deveria ocupar. — finalizou o psicólogo do esporte.

O que disse o São Paulo?

A reportagem da Trivela entrou em contato com o São Paulo, que explicou que houve a procura de alguns profissionais após a saída da Anahy Couto, mas optou por seguir outro caminho, antes mesmo da chegada do técnico Zubeldía.

Sem um psicólogo no dia a dia, o departamento médico do clube “monitora e acompanha de perto” os jogadores. Se algum atleta pedir, será encaminhado ao tratamento psicólogico externo.



Artigos relacionados

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *

Botão Voltar ao topo